domingo, janeiro 24, 2010

SR. DOMINGOS - UM PORTIMONENSE À ANTIGA

Quem acompanha a vida do clube há já algum tempo, saberá certamente que a vida do Sr. Domingos Silva, antigo funcionário e um dos sócios mais antigos do Portimonense, se confunde com a própria história do clube.

Sócio número 14 do Portimonense Sporting Clube, há quase 66 anos, o Sr. Domingos abriu-me a porta de sua casa numa altura em que eu pensava que não existia um museu do clube. Enganei-me redondamente quando vi as suas paredes, repletas não de fotografias suas ou da sua família, mas de quadros de antigos plantéis e jogadores do (único!) clube do seu coração.

À medida que ia conversando com o Sr. Domingos, ia-me dando conta de que não se tratava de uma entrevista, mas de uma conversa amena em torno do Portimonense com muita história e alegria à mistura.
Antigo quadro do Portimonense que ganhou num sorteio.
Duas das paredes da sua casa.

O Sr. Domingos coleccionava as suas quotas num pequeno dossier.

Sr. Domingos na comemoração da primeira subida à Primeira Divisão, em 1977.


Sr. Domingos, como é que você chegou ao Portimonense?

Vou começar pelo princípio, e contar a minha história.

Nasci em Vila Nova de Portimão, em 1922. Nessa altura, Portimão não era ainda uma cidade, era uma vila, tornada cidade pelo "nosso" Teixeira Gomes em 1924.

Quando eu era pequenino, a cidade tinha 4 clubes: o Glória ou Morte, o Boa Esperança, o Juventude e o Portimonense. O Juventude equipava à Benfica, o Glória ou Morte equipava à FC Porto e o Boa Esperança equipava com camisola verde e calção azul.

Depois o número de clubes com representatividade no futebol foi reduzindo, só ficou o Portimonense. E eu simpatizei logo pelo Portimonense por causa do equipamento: camisolas às riscas pretas e brancas e calção branco. Realça muito, o preto com o branco. Não gosto de ver o Portimonense equipar com calção preto, como o Espinho, o Varzim ou o Nacional da Madeira fazem…

Simpatizei de tal forma com o Portimonense que, já com 6 ou 7 anos, me punha à porta do Estádio, agarrava-me às calças dos homens e dizia-lhes: “leve-me consigo, que eu sou seu filho!”. Todos os domingos tinha um pai diferente. Eram tempos difíceis, tempos de Salazar e companhia, em que os miúdos não iam à bola. Não era costume entrarem crianças no estádio, nem com pais, nem com tios, nem com avôs…

Assim nasceu a minha paixão pelo Portimonense. Não é um vício nem uma doença, como já chegaram a chamar-lhe; não me considero nem viciado nem doente pelo Portimonense: não sou faccioso nem desordeiro, sou muito calmo a ver a bola e sei enfrentar as vitórias e as derrotas. Por vezes, chegava a casa e diziam-me: “Ah, pela tua cara, o Portimonense perdeu…”. Ao que eu respondia: “Enganas-te. Ganhou.” “– Então vens com uma cara tão triste…” “– Eu sou sempre o mesmo…” Nunca fiz da bola motivo de guerreias entre malta amiga: a bola é para a gente se divertir, e não o contrário. Nunca fui treinador de bancada e soube sempre respeitar todos desde treinadores a jogadores, dirigentes e companheiros de bancada…

Quando a indústria conserveira começou o seu declínio em Portimão e a fábrica onde eu trabalhava fechou, já depois do 25 de Abril, fui convidado pelo Sr. Vergílio a ir trabalhar para o Portimonense. Nessa altura o estádio não era nada daquilo que hoje é. A bancada dos sócios tinha só 4 degraus e o resto era terra batida dos lados… O homem que varria as bancadas já era velho e precisavam de outro que o substituísse. Foi o Sr. Vergílio quem se lembrou de mim para ocupar o cargo, pois eu era um sócio dedicado (entrei como sócio em 1944 com o número 1003; o valor mensal das quotas era de 5 escudos).

Entretanto o estádio começou a ganhar maiores dimensões: a bancada dos sócios, de 4 passou para 17 degraus. Construiu-se a bancada topo sul e depois a bancada do lado da avenida. Essas 3 bancadas ficaram uniformes, todas com 17 degraus, como ainda está. Quanto a mim, ajudei mais o João Alfarroba e uns quantos a construir a bancada do peão e ajudei a semear a relva com mais uma porção de gente. Os pássaros comeram a maior parte da semente.

A relva nasceu mal: aquele campo não tem pedrado, como o campo do Dois Irmãos ou o do Major David Neto. A relva foi semeada em cima da terra e um campo para ter uma relva forte precisa de ter pedrado por baixo, para a semente da relva ficar mais funda. Por isso é que a relva do campo do Portimonense não presta.

Era eu quem varria as bancadas todas, à medida que elas iam crescendo. Cheguei a varrer aquele campo todo, sozinho. Pegava numa pá e numa vassoura e em 3 quartos de hora varria a bancada central (os outros levavam quase um dia para varrer aquilo). Mais tarde, o homem que marcava o campo foi-se embora e eu comecei a marcar o campo também. Ainda o campo era pelado: primeiro fazia-se uns regos (ainda sei as medidas de cor) e depois punha-se a cal nos regos. Primeiramente com cal líquida, mais tarde com cal em pó. Quando o campo foi relvado, não se podia usar cal, porque queimava a relva.

Nessa altura o Major David Neto deu aquele terreno para o Portimonense fazer lá o seu estádio, na condição de não ser transmitido enquanto o Portimonense existisse. Se o Portimonense acabasse, os terrenos seriam para os legítimos herdeiros. Também cheguei a marcar o pelado do Major David Neto, que agora é sintético. E o relvado. Na mesma altura, cheguei a marcar 3 campos: um pelado e 2 relvados, além de varrer o estádio. E à segunda-feira ia para o centro da cidade distribuir programas – o que ainda hoje faço – dos jogos do Portimonense. O meu director era o Sr. Hélder (guarda da cadeia). Ainda é hoje quem, nos intervalos dos jogos, vai tapar os buracos no relvado.


Você não é de mais nenhum clube, pois não?

Mais nenhum, só Portimonense! Não discuto os outros, nem Benfica nem Sporting; gosto de ver todos jogar e dou valor àquele que sabe jogar à bola, mas não discuto com as pessoas. Quando vejo que a coisa está a azedar, corto a conversa.


Ainda espera ver o Portimonense jogar no estádio novo?

Eu queria… Mas os anos vão aumentando cada vez mais. Já tenho dito tantas vezes que não chego lá. Já tenho 88 anos, feitos a 4 de Janeiro…


E acha que, mesmo neste estádio velhinho, ainda vai ver o Portimonense jogar na Primeira Divisão?

Eu espero que sim, estão a dar boas indicações para isso…


Acha que falta alguma coisa para o Portimonense subir de divisão?

Uma casa tem de ser construída por baixo, pelas fundações. O Olhanense comprou meia dúzia de velhos bons e subiram. Agora para jogarem na Primeira Divisão, os velhos já não são assim tão bons e agora vêem-se à rasca para se manterem lá. Em Portugal, a idade dos jogadores é uma moça maior, face às condições existentes. Sei que o Portimonense irá buscar jogadores [se subir]. Vamos lá ver… Em termos de sócios, Olhão é uma terra mais bairrista. Podem não ter tanta gente como Portimão, mas a maior parte das pessoas daqui não são de Portimão: vieram de outros sítios viver aqui… Demora algum tempo até que essas gentes comecem por acarinhar o clube duma terra que não é a delas. Nesse sentido, creio que uma subida de divisão iria mexer muito as pessoas daqui e trazer mais sócios ao Portimonense, talvez mais que o Olhanense… Falta muito amor ao clube [Portimonense] porque a maior parte dos habitantes não são originalmente de Portimão. As afinidades demoram a ganhar raízes, principalmente quando a mediatização não ajuda. E também um estádio novo, que este já não está capaz. As pessoas que vão à bola querem sentir-se confortáveis.


E o que é que gostaria de dizer aos restantes sócios do Portimonense?

Eu nunca voltei as costas ao clube. E nunca tive grandes posses, mas estive sempre presente. Desde 1944 já passámos por momentos maus e por momentos bons. Um verdadeiro sócio, um verdadeiro portimonense está presente em tudo. É muito fácil a gente deixar de ir à bola ou de pagar as quotas quando o clube não está bem e voltar quando tudo corre melhor. Mas agir assim não demonstra carácter nenhum. Que valor tem um homem que só é do Portimonense para as coisas boas? Se é assim com o seu clube, também será com outras coisas da sua vida…

O que eu gostava que os sócios fizessem é aquilo que eu tenho feito também nestes anos de associativismo: tentar arranjar mais sócios e não desistir de ser sócio, só porque o avançado não marca ou o defesa deixa passar bolas. O amor a um clube não é o amor a um jogador, a uma equipa, a um treinador, presidente ou projecto: é algo muito maior que isso tudo. Se cada sócio arranjar um sócio, isto anda para a frente como deve ser. Já arranjei uns 5 sócios, com esta Direcção…

4 comentários:

P. disse...

Este é um dos artigos historicamente mais ricos do blog. Com quase 90 anos de vida, o Sr. Domingos conhece o Portimonense como muito poucos.

Recordo-o atarefado em trabalhos de manutenção no estádio. Quando aparecia por lá um grupo de miúdos para utilizar o ringue, era sempre ele que abria a porta, que para nós significava uma tarde inteira de futebolada.

Particularmente interessante neste post é a história do relvado:

"A relva nasceu mal: aquele campo não tem pedrado, como o campo do Dois Irmãos ou o do Major David Neto. A relva foi semeada em cima da terra e um campo para ter uma relva forte precisa de ter pedrado por baixo, para a semente da relva ficar mais funda. Por isso é que a relva do campo do Portimonense não presta."

Ou seja, aquilo está mal feito de raíz. A ser verdade, isto vem desvendar boa parte dos problemas crónicos do terreno.

Parabéns pelo post, Dário. Se não fosses tu, dificilmente me lembraria hoje do Sr. Domingos. Já lá vão uns anos.

Simões

Anónimo disse...

De nada, Simões... ;-) Seria uma pena não aproveitar tamanha história viva do Portimonense e até creio que ele terá muito mais para nos oferecer que não surgiu nesta entrevista...

Anónimo disse...

Gostei de ler a entrevista com este sócio e colaborador do Portimonense ainda no activo apesar da sua idade.
Mostra ser um homem de grande caracter que nunca vacilou no seu amor pelo Portimonense.
Explica bem o que devem ser as caracteristicas do verdadeiro adepto.
Os meus mais profundos respeitos a este grande senhor.
Obrigada

phil disse...

Bom artigo Dário

Um verdadeiro exemplo do que é poder chamar "Orgulho" ao Portimonense, ao clube da nossa terra.

phil ' BN 09